Vamos nos propor a tentar fazer aqui uma coisa que é quase impossível, contar a história dos bairros de Vargem Grande e Vargem Pequena bem resumidamente, desde antes dos tempos do Brasil Colônia, depois Império, e República, até os dias atuais
Claro que muitos assuntos, fatos e pessoas importantes para o lugar vão acabar ficando de fora, mas é o preço que vamos pagar
Antes da colonização dos portugueses, habitavam por essas bandas diversas tribos indígenas, incluindo os Tupinambás, que segundo os documentos e as pesquisas, sempre foram em maior número, por esse motivo vamos citá-los
No período pós colonização, a partir de 1500, começamos com um documento histórico, muito antigo e extremamente importante, que são as escrituras oficiais de uma Sesmaria, dada pelo Rei de Portugal no governo de Salvador Corrêa de Sá, aos seus filhos, uma jogada de Salvador, essa Sesmaria é datada de 1579
Preciso falar aqui dos privilégios que essas pesquisas nos trazem, esse documento foi pesquisado na Biblioteca Nacional (vale demais uma visita!), em uma das muitas visitas que fiz e que ainda vou fazer, e ganhei dois grandes presentes, o primeiro foi que tive acesso ao DOCUMENTO ORIGINAL, isso mesmo, me foi trazido a Sesmaria original, com umas letras lindas, muito bem desenhadas, mas que não se consegue decifrar o que está escrito, mas o trabalho da Biblioteca Nacional é tão perfeito que existe o documento “traduzido”, para facilitar a leitura e compreensão, e ainda tive o segundo presente, uma autorização especial para digitalizar a Sesmaria original, claro que seguindo rígidos padrões
Mas vamos voltar à história, os filhos, que foram os beneficiários da Sesmaria, que eram menores de idade, repassam de imediato essa Sesmaria ao pai, Salvador Corrêa de Sá, e isso logo após a terem recebido, aqui a jogada fica clara, ele não poderia, por razões do momento, solicitar a Sesmaria para si próprio, então, a solicita em nome dos filhos
Essa Sesmaria tratava de uma área de terra muito extensa, que englobava muitos bairros que conhecemos hoje, incluindo os bairros de Vargem Grande e Vargem Grande Pequena, focos centrais da nossa história
Depois da doação da Sesmaria, vão se passando os anos, quase um século, a Família Sá continua sendo muito poderosa e influente no Brasil Colônia, vários membros são nomeados Governadores Gerais, tanto do Rio de Janeiro quando em outros lugares, e então chegamos a figura de Gonçalo Correia de Sá, que foi o proprietário do Engenho do Camorim, criado por ele em 1622, que mais tarde se tornaria as Fazendas de Vargem Grande e de Vargem Pequena
No Engenho do Camorim, em 04 de outubro de 1625, Gonçalo Correia de Sá ergue uma capela em homenagem a São Gonçalo do Amarante, santo católico do qual era devoto, igreja essa, linda e de uma arquitetura simples e formidável ao mesmo tempo, que continua de pé até os dias de hoje, podendo e devendo ser visitada, o que recomendamos fortemente, estando situada na Estrada do Camorim 925
Gonçalo Correia de Sá teve apenas uma filha, Dona Vitória Correia de Sá, que em 1630 casa-se, através de um grande acerto familiar, com D. Luís Céspedes y Xeria, um espanhol nomeado Pelo Rei da Espanha Governador Geral do Paraguai, esse fidalgo espanhol possuía o título, a nobreza, a pompa e a fidalguia, porém, não tinha posses. A família Sá, prevendo grandes possibilidades nessa nomeação, resolve bancar a viagem de Céspedes até o Paraguai, que na época tinha uma das maiores mina de prata do mundo, e a Bacia do Prata, com o Rio da Prata tendo uma importância gigantesca na navegação, na viagem ao Paraguai, Céspedes passa antes pela então capital do Império, Rio de Janeiro, onde é apresentado a Dona Vitória
Céspedes retoma sua viagem e chega primeiro ao Paraguai, Dona Vitória viaja em seguida e acontece o casamento. Dona Vitória, após a união, retorna ao Rio de Janeiro sem o marido. Céspedes se alia aos Bandeirantes, tanto portugueses quanto paulistas, e resolvem entrar em conflito com a Igreja Católica, principalmente com as missões jesuítas, no Rio Grande do Sul, e nas guerras que acontecem, são derrotados pela Igreja Católica, Céspedes então é condenado, preso e acaba falecendo na cadeia
Dona Vitória de Sá já tinha retornado ao Rio de Janeiro, ficando viúva e sem filhos, com toda a sua parte na Sesmaria, sendo uma mulher extremamente católica e muito devota de São Bento, resolve doar suas terras, quando de sua morte, ao Mosteiro de São Bento
Para isso ser levado à frente e ter seu devido valor legal, é feito um testamento oficial em 30 de janeiro de 1667, tendo sido o testamenteiro o Frei Leão de São Bento
Vale dizer que temos a versão original desse testamento
Dona Vitória de Sá faleceu em 26 de agosto de 1667, e como doadora de toda a terra, e o que havia nela, com absolutamente todos os seus pertences, como terras, animais, casas, escravos, etc, pede que seu corpo seja enterrado no Mosteiro de São Bento, e que em todo ano de aniversário de sua morte lhe seja cantada uma missa
Importante ressaltar que o seu túmulo permanece até os dias de hoje no piso da nave central, em frente ao altar mor no Mosteiro de São Bento, centro da cidade do Rio de Janeiro, ainda com a lápide original, com seu nome e data de seu falecimento, podemos simplesmente ir ao Mosteiro de São Bento, entrar na Igreja, ir caminhando no sentido do Altar Mor, olhando para o chão, e encontrar esse monumento histórico, isso é a história viva
Também vale a muito pena uma visita ao Mosteiro de São Bento, a Igreja é linda, tem a sua própria história, onde além da visita ao túmulo de Dona Vitória, apodemos ainda assistir a uma missa cantada com os Cantos Gregorianos, que é divino
Com a morte de Dona Vitória, os Beneditinos fazem valer o testamento e reivindicam suas novas terras, mas há aqui uma briga de cerca de 10 anos com Salvador Correia de Sá e Benevides, primo de Dona Vitória Correia de Sá, que alegava ser o único herdeiro legítimo das terras deixadas por sua prima, não concordando com a partilha
Após a demanda, tanto no Rio de Janeiro como em Portugal, com várias cartas de ambos os lados ao El Rei, prevendo que não conseguiria sair vencedor, Salvador Correia de Sá e Benevides faz um acerto com os Beneditinos, recebendo uma quantia em dinheiro, e assim acontece o término do embate, e enfim os Monges Beneditinos tomam a posse legítima e definitiva das suas terras
Mais à frente, no século XVIII Frei Lourenço da Expectação Valadares cria a Fazenda de Vargem Grande, na antiga Estrada de Guaratiba, atual Estrada dos Bandeirantes, onde ainda se encontram ruínas de construções antigas desse tempo, todas de pedras, construídas pelos escravizados dessa época, no que hoje é conhecido como Sítio das Pedras
É bom ressaltar que em 29 de setembro de 1871, 17 anos antes da Lei Áurea, os Beneditinos se antecipam e resolvem emancipar todos os seus escravos
Em 05 de janeiro de 1891 o Mosteiro de São Bento, com algumas questões financeiras a resolver, decide vender suas terras à Companhia Engenho Central de Jacarepaguá, que em 03 de fevereiro de 1891, apenas um mês depois, fato um tanto quanto muito estranho, as repassa ao Banco de Crédito Móvel, que em 1936 passa à Empresa Saneadora Territorial Agrícola – ESTA do conhecido “Chinês da Barra”, Tjong Aiong Oei, na verdade cidadão nascido em Cingapura
Apenas devemos lembrar que temos episódios bem ruins com o Banco de Crédito Móvel, com muitos relatos de moradores antigos sobre desapropriações ilegais, violências, etc
O mais incrível é que ainda hoje o Banco de Crédito Móvel figura como proprietário de muitas terras dentro do Parque Estadual da Pedra Branca, mais especificamente no bairro de Vargem Grande, sem documentos registrados com RGI, mas com escrituras e promessas de compra e venda, figurando como pólo em vários processos e leilões judiciais
Em 1974 é criado o Parque Estadual da Pedra Branca, Lei Estadual N⁰ 2.377, de 28 de junho de 1974
Com a criação do Parque, os moradores começam a receber documentos de desapropriaçao, onde perderiam suas terras conquistadas com muito suor e dinheiro, já que chegaram a comprar a titularidade, alguns até por duas vezes, do Mosteiro de São Bento e do Banco de Crédito Móvel, muitos tendo as notas promissárias desses contratos,
Com as ameaças de despejo cada vez mais fortes, no ano de 2009 moradores tradicionais do Parque se juntam e começam a elaborar uma estratégia que pudesse barrar essas desapropriações, e surge um plano de manejo, criado e levado junto a instituições, que foi finalizado no ano de 2012, e em 2013 reuniões culminam com uma declaração de descendência de escravizados
Com a ajuda preciosa da ONG Panela de Barro, isso já em 2014, há o reconhecimento do Quilombo, e finalmente em 16 de agosto de 2014 a comunidade recebe a certificação junto a Fundação Palmares, que é o órgão federal responsável por essas titulações
Nasce o Quilombo Cafundá Astrogilda
Dizem que Cafundá é pelo endereço antigo, Caminho do Cafundá e Astrogilda em homenagem a matriarca, Dona Astrogilda, mulher forte, rezadeira maravilhosa, grande conhecedora das sabedorias ancestrais
Assim, resumidamente, passamos por mais de 500 anos de história do Brasil, especificamente dos bairros de Vargem Grande e Vargem Pequena