O velório do Pingo

O VELÓRIO DA ANIMAÇÃO – VARGEM GRANDE

O velório do Pingo! Morre um entusiasta da boemia, um notívago inveterado, sonhador e seresteiro, afeito aos goles de geladas e quentes, aquele sujeito encantador de mulheres e amigos, Jorge dos Santos Mesquita!

E o velório do Pingo foi na sede da Associação local, AMAVAG – Associação de Moradores e Amigos de Vargem Grande, visto que o sujeito era muito bem querido em toda a comunidade, os familiares mais
chegados ficam com a incumbência de produzir a bebida tradicional do lugar, coisa na verdade que os poucos mais íntimos é que tinham essa liberdade e o privilégio de ver fazer, e principalmente, de degustar, vieram então com 25 litros do mais puro Parangolé, esse é o nome da sagrada bebida dos Deuses dessas bandas, que olham regozijados do alto de sua sabedoria, os afazeres mundanos mais sacros que possam existir. Então assim é feito, na emergência que o assunto pedia, e além do néctar líquido produzido, os amigos vão chegando, uns com cachaça, pra esquentar de uma vez o ambiente, outros com a cerveja estupidamente gelada, pra dar o equilíbrio aos goles mais ávidos, e com o samba e o pagode do mais fino trato, o velório vai tomando forma.

Não nos esqueçamos da presença ilustre do Defunto, até porque esse é o velório do Pingo, se despedindo de todos do jeito que sempre viveu. Bebidas, alegria, farra, e o sentido da vida que lhe sempre fez sentido!

E esse foi o dia em que um vivo perdeu uma mulher para um morto! Não é mentira meu povo, o senhorzinho malandro foi cercando a senhorinha desprotegida, talvez uma solteirona do bairro, lhe colocando contra a parede, não deixando saídas para a pobre indefesa, já preparando o ataque final, o beijo roubado mais aguardado de todos os tempos. Mas, eis que de repente essa donzela dos velórios escapa das mãos do tiozão transloucado, saindo de carreira por baixo de seus braços, indo de encontro ao morto, lhe tascando um beijo na boca, e ali mesmo, declarando todo seu amor, talvez, desde os tempos de juventude!

Claro que isso não foi muito bem absorvido pela viúva, que precisou ser contida pelos presentes para que o morto não tivesse, naquele mesmo momento, a companhia defunta de nossa apaixonada dama velorial. Ânimos acalmados, viúva retomando seu posto de primeira dama, as atenções se voltam ao que estava acontecendo antes do acontecido, samba, pagode, bebidas e uma comidinha, porque não há Santo que aguente, “saco vazio não fica em pé”, era o que mais se ouvia pelos cantos da sala mortuária.

Foi ainda o dia em que um padre, de nome Ricardo, foi acordado tarde da noite para encomendar a alma do falecido, detalhe, o padre morava nos fundos da Igreja de São Sebastião, padre esse que aceitou o “convite” dos amigos do morto, bastante inflamados pelo altíssimo teor alcoólico já consumido, vislumbrando poucas chances de convencimento aos que lhe “pediam” tão singela homenagem, na verdade se resguardando, corpo, alma e mente, de ataques furiosos frente a uma negativa sua. E eis que nosso padre, já vestido com suas vestes principais, chega na sede da Associação, muito bem recebido, e logo foi tomando provas do Parangolé noite adentro, tomando provas e tomando gosto, e acreditem, chamando o principal organizador do evento, Sandro, filho do senhor ali deitado inerte, responsável direto pela feitura do Parangolé e pelo evento, para lhe pedir humildemente, e sem que nenhum presente pudesse ouvir, um pouco dessa bebida que inebriava pensamentos, descansava almas, amortecia pecados, santificava homens, e é claro que nosso bravo homem de batina teve seu pedido aceito, quase como se fosse um pagamento pelos serviços prestados, levando consigo, escondido no bolso da batina, mais de litro da bebida dos Deuses para uma degustação caseira. Não sabemos mais notícias de como foi o consumo do precioso bem pelo padre, e talvez seja melhor assim.

Havia ainda uma outra regra a ser seguida, regra de extrema importância, que não poderia em nenhuma hipótese ser quebrada, o ato da encomenda da alma deveria, obrigatoriamente, ser feito antes da virada do relógio, antes da meia noite, hora de excepcionais acontecimentos, e nunca, nunca mesmo, depois disso, por motivos que nesse momento, me são alheios. Como falado acima, o padre faz os votos sagrados da encomenda da alma do nosso herói sem vida, obedecendo aos critérios do horário, no ritmo que o Parangolé absorvido lhe permitia, talvez trocando aqui e ali umas palavras do breviário, misturando o português alcoólico com o latim dipsômano, mas ao final dando conta de tão honrosa ação que lhe foi devotada.


Após esse breve momento em que os instrumentos e as vozes se calaram, volta a alegria dos sambas e pagodes, inflamados cada vez mais pela quantidade de álcool que chegava e era consumido como
se não houvesse amanhã. Mas nem tudo é somente o som alto dos instrumentos que estavam em ação desenfreada, lá pelo meio da madrugada, era a hora de acalmar um pouco os ânimos, então, troca-se o pagode e o samba pela seresta, ritmo esse que era dos preferidos do nosso homenageado da noite, seresta que entrava noite a fora nos seus tempos de vivo, seresta que embalava namoros e desaforos, e como num jogo de futebol, final de campeonato, acontece a substituição tão aguardada, sai Alcione e entra Nelson Gonçalves. E vamos de seresta até o amanhecer do dia!


Amanhece o dia, os trabalhos não cessaram, foram consumidos litros e litros do que aparecia pela frente, quente ou gelado, é chegada a hora das despedida do velório do Pingo, e isso foi se desenvolvendo até a hora de levar o corpo para o cemitério, o carro da funerária chega, e com aqueles tradicionais ônibus cedidos por empresas de transporte para levar o vivo mais amado dessas redondezas, e como ninguém é de ferro, pensando sempre no melhor para o defunto, volta o samba e o pagode de primeira linha, caprichado dentro do que era possível no chacoalhar dos ônibus e no rodopiar das canas tomadas.


O cortejo finalmente chega na última morada, e para quem passava ou estava velando seus mortos, a impressão que dava é que tinha chegado uma escola de samba na ala de concentração da bateria,
houve nesse ínterim um pequeno princípio de confusão, de um lado os que achavam total falta de respeito, do outro, os abnegados parentes e amigos que faziam suas últimas homenagens,
caprichando na despedida do amigo que partia.


Isso ainda não foi o fim, os coveiros responsáveis pelos atos finais foram dispensados, pela turma da organização do enterro, de suas atividades fim, sendo obrigados pelos presentes a ir deixando as
pás, enxadas e tudo o mais, para assumir outros instrumentos mais afinados, e olhem só que coisa mágica, os coveiros eram chegados a um bom samba e um pagode ritmado, um deles pegou um
pandeiro, um outro foi de repique, um terceiro foi de tamborim, o mais velho de todos atacou de tantan, a hora final chegava, a última despedida estava em cima do laço, os parentes e amigos mais
próximos do defunto se incumbiram de baixar o caixão, com o acompanhamento luxuoso do grupo ali criado, Coveiros do Ritmo, e realizaram o enterro mais bem resolvido dessas paragens.

E assim foi o velório do Pingo, um homem amado pelos seus parentes e amigos, e reverenciado como devia!

Não se fazem mais velórios e enterros como esse.

E que fique registrado, essa é a mais pura verdade!

O resto é conversa fiada!

Texto de Tony Viegas conforme relatos de Sandro (obrigado meu amigo!)

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